Acordei tarde hoje. Depois de dançar até à 1h (cheguei cedo e voltei cedo também) no Gates, resolvi me dar esse luxo e já passava das 11h quando terminei de lavar o rosto e escovar os dentes. Ao abrir a geladeira, a certeza da próxima atividade do dia: ir ao mercado. Arroz, frutas, verduras, legumes... tudo em falta! Comi o último iogurte com algumas poucas castanhas que restaram (mais duas coisas para comprar) e fui ao mercado.
O Extra é um super-hiper-mega mercado, maior do que o BIG Cristal em Porto Alegre, que fica a poucas quadras da minha casa. No caminho, fui curtindo o ar que anunciava a chegada da chuva e pensando no rodízio de caldos que um dos restaurantes dentro do mercado costuma servir. Ao chegar lá, A Decepção parte I. Nada de caldos! Nem caldo verde, nem de feijão, nem de milho, muito menos de peixe e de costela. Ok ok... paciência... Ao invés disso, um buffet repleto de saladas e carnes ao molho. Resolvi comer aquilo mesmo. Mas ao provar a comida, o sabor artificial de molhos prontos e enlatados não me deixou terminar a refeição. Inacreditavelmente, fiz uma coisa que abomino: deixei quase metade da comida no prato. Fui às compras então. Peguei menos do que o necessário e fui para a fila. Qdo cheguei no lugar dos “até 20 itens” não acreditei”! Decepção parte II: a fila dava voltas pelo supermercado! Todas as pessoas de Brasília tinham tido a mesma idéia que eu!
Desisti! Absolutamente eu não iria perder no mínimo 40 minutos do meu dia em uma fila gigantesca e por causa de algumas poucas coisinhas. Além do mais, eu estou precisando mesmo entrar numa dieta... ainda que forçada. Deixei a cesta em um caixa e fui embora, contrariada.
Na saída do Extra, uma senhora se esforçava para retirar várias sacolas de dentro do carrinho. Seguia a pé na minha frente e quando a ultrapassei, não hesitou em me chamar:
- Moça! A senhora está indo na direção da 716? Perguntou ela esbaforida.
Eu, do meio de meus pensamentos e chamada à razão após ter-me lamuriado por não poder comprar o que queria, respondi:
- Estou sim.
E fiquei olhando para os enormes olhos verdes e a pele extremamente clara daquela mulher. Devia ter o que: 64 65 anos?
- A senhora poderia me ajudar com as compras? É só até ali em cima. Disse ela em tom quase de súplica.
O pedido me caiu como um vazo na cabeça. Era óbvio que ela precisava de ajuda!
- Sim claro! Respondi com uma vergonha que não pude esconder, e mesmo que quisesse, não conseguiria.
- É que tenho problema na coluna. Normalmente pego táxi, mas hoje eles decidiram não trabalhar. E além de tudo, olha só meu ombro.
Insistiu para que eu tocasse no ombro que estalava ao menor movimento. Peguei algumas sacolas e seguimos.
Depois que parte de minha vergonha por não ter tido a iniciativa de ajudar passou, observei o sotaque. Era gaúcha. Então perguntei de que parte do Rio Grande do Sul ela vinha. Santana do Livramento e Quarai. Ela então perguntou sobre mim. Respondi apenas Porto Alegre. Não ia entrar em detalhes explicando que minha família é de Bagé, eu nasci no Paraná, fiz faculdade em Santa Maria e depois me mudei para Porto Alegre e agora estava em Brasília (ufa!). Seguimos a conversa:
- Minha filha mora aqui em Brasília e tem um apartamentinho muito bom para onde me mudei. Mas moro só e não tenho carro, aí fica difícil ir ao mercado. Não tenho ninguém para fazer por mim ou mesmo para dividir o peso das compras.
- Sei como é.
Limitei-me a responder
- Como assim? A senhora tão jovem e bonita por certo tem marido!
Ah! Bondosos olhos verdes....
- Não, não tenho.
- Ai! Mas que pena! Brasília é uma cidade tão ruim pra se arrumar namorado! Onde tem um “preto” caem 10 em cima. É horrível! Olha, quem vem casada tudo bem, mas quem ainda não casou... é quase impossível! Disse ela balançando a cabeça.
Ri do comentário, concordei mas internamente torci para que fosse apenas uma constatação e não uma profecia...
Chegamos no prédio. Uma vira-lata aguardava a senhora na sacada. Com laço vermelho no pescoço festejou a chegada da dona que conversava com a cadela como se falasse a uma criança.
O apartamento era uma gracinha. Pequeno, cheio de mobília, mas muito bonitinho. Na sala uma das paredes era pintada de verde. O sofá, modernamente vermelho. Porta-retratos pendurados por todo o lugar. Na cozinha, larguei as compras em cima da mesa e perguntei o nome da senhora.
-Eva! Sem Adão.
Respondeu ela com um sorriso e arregalando os olhos verdes. Ela se parecia com alguém. Ou com alguéns. De costas e de perfil era muito parecida com a tia Marta. Cabelos cacheados e pintados num tom louro escuro. A voz e os enormes olhos verdes eram da Guerti. O tom de pele, branco transparente, da vó Vilma e os inúmeros quadros da família nas paredes, certamente da Vó Mariazinha.
- Muito prazer dona Eva, Roberta.
- Quer anotar meu telefone? Vem tomar um chazinho uma hora dessas. Faço um com especiarias que é maravilhoso! O ideal é esperar esfriar um pouquinho. O Gaúcho gosta de conversar, não é mesmo?
Lá fora trovejava. A chuva logo logo ia chegar. Usei isso como desculpa para recusar o suco que me oferecia. Peguei o telefone da solitária senhora.
Quando ia me despedir, fiquei embaraçada ao ver que ela pegava minha mão para beijar em agradecimento. Tentei puxá-la sem êxito. Disse a ela que não precisava agradecer. Ela me puxou para um abraço e me desejou mil coisas boas.
É estranho como depois de conviver com uma certa frieza nas pessoas, um gesto de carinho e de amor de um estranho pode provocar um certo choque na gente. Fui embora pensando se alguém faria o mesmo por minhas avós ou por meus pais quando se tornarem mais velhos. Mesmo agora, enquanto escrevo e a chuva cai mansa, não deixo de sentir-me envergonhada por não ter partido de mim, a iniciativa de ajudar a simpática e solitária senhora.
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Há 3 meses
4 comentários:
Grande Roberta! Estás transmutada numa cronista do cotidiano, hein!? É um exercício de fruição de sensibilidade, muito tri mesmo.
Aproveitei que os 3R's não iam aparecer aqui em R e me mandei pra cá! Curtir as histórias, os mates e os rangos da Zinha e do César é uma meditação zen. Isto é, não dá pra passar "zen" uma cervejinha Bud.
Mas quanto ao tema do desconhecimento sobre o Sabino, que "blogastes" (existe isso?) uns dias atrás, com uma certa ponta de "culpa", nem esquenta não. Eu mesmo, depois de me enfronhar nessa área, sentia uma vergonha diária, sempre tinha um livro que eu não tinha lido. E de uma cara famoso! Mas foi passando...
Sobre este assunto, tem um artigo do Umberto Eco na última Entre Livros, que faz a gente relaxar:
http://www2.uol.com.br/entrelivros/artigos/os_livros_que_nao_lemos.html
Bueno, é isso!
Vamos escutar uns sons, bebericar algo, e falar mal dos que não estão. Logo, sinto muito, tu vais ficar fora do papo...
Super-beijos!
Paulo, o Juner.
Muito legal a tua crônica.
Agora há pouco vive um estranhamento semelhante. A namorada do meu colega de apartamento veio me dar tchau pois volta amanha para a Franca. Nao sabia se dava 1, 2, 3 beiijinhos ou nada - o mais comum na Alemanha. Por fim, ela tomou a iniciativa e me deu dois beijos na bochecha. Depois fiquei pensando o quanto a gente fica sem saber qual é o código socila numa terra estrangeira.
Oi Roberta, sou amiga da Julia (se acento!) e caí aqui pelo blog dela. Muito legal, adorei esse post. Praticamente uma reportagem literária!
Voltarei, certamente :o)
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